
Por Jason
Num futuro próximo, os replicantes são humanos biomodificados, inicialmente desenhados pela Tyrell Corporation para trabalhos escravos e que tinham duração limitada. Após a ruína da Tyrell e o colapso dos ecossistemas em meados do ano de 2020, Niander Wallace (Jared Leto), um empresário da agricultura sintética, evitou a escassez de alimentos, adquiriu a Tyrell e criou novos modelos - os Nexus 8, que por terem vida útil indeterminada, sobreviveram. Agora, os Nexus estão sendo caçados pelo policial K (Ryan Gosling).
O filme abre na California de 2049 em uma fazenda cuidada por um replicante do tipo Nexus 8 (Dave Bautista). Depois de "aposentá-lo", K esbarra acidentalmente com restos mortais dentro de uma caixa. As amostras revelam que se trata de alguém que morreu dando a luz e foi submetida a uma cesárea emergencial. Como se não bastasse, se tratava de uma replicante e isso mudaria o rumo de todo o mundo: seria uma criança filha de replicantes gerada e posta no mundo de forma natural. Para todos os efeitos, isso significaria que os replicantes seriam mais do que simples escravos ou criaturas sintéticas, com o poder de serem donas de suas próprias vidas, de interagirem e gerarem seus próprios filhos. Numa escala evolutiva, eles também seriam os próximos seres a herdarem a Terra. É a partir daí que começa a sua caçada ao filho dessa replicante, que vai levar K a encontrar Luv (Sylvia Hoeks, um achado), a agente assassina de Wallace - que também quer a criança - e, enfim, dar de cara com Deckard (Harrison Ford).
K tem uma vida solitária em sua casa, onde vive com um programa de computador holográfico Joi (Ana de Armas) que almeja ter o seu corpo físico para poder se relacionar com o policial. Não por acaso, o que chama atenção no roteiro - e isso é genial do ponto de vista narrativo - é que a jornada de K em busca da criança é também a sua busca por uma identidade. Quando conversa com sua chefe Joshi (Robin Wright) e é perguntado sobre uma de suas memórias quando era criança, K tem consciência que não passam de implantes e paralelo ao seu trabalho de encontrar essa pessoa, ele atravessa sua jornada de autoconhecimento.
O nascimento dos replicantes é algo entre o insano e bizarro (e inesquecível) e a forma como suas memórias são construídas, na pele de uma doutora que vive isolada dentro de uma bolha de vidro (um dos momentos mais interessantes, sem dúvidas), é só um dos inúmeros pontos criativos do longa. Se no original víamos apenas a Los Angeles chuvosa e atulhada de trânsito, abarrotada de imigrantes como uma torre de babel futurista, aqui o filme amplia o seu alcance, abrindo com a Califórnia de 2049 com suas exóticas fazendas de alimentos sintéticos, passando pela San Diego que virou um grande lixão a céu aberto, por muralhas que contém o avanço dos oceanos até a cidade fantasma de Las Vegas engolida pela poeira do deserto. O visual é arrasador, a direção de arte é de cair o queixo, a fotografia do filme é uma loucura de perfeição - isso sem falar no cuidado dos figurinos e na estética ultrarrealista de um futuro completamente pessimista. A passagem por San Diego, aliás, envolvendo crianças, é estarrecedora. A trilha sonora de Hans Zimmer consegue captar toda a essência do original de Vangelis, um feito e tanto para alguém que vinha se repetindo filme após filme; os efeitos especiais são impressionantes e o design de som é um triunfo - preste atenção na sequência de Las Vegas, na projeção defeituosa de um show de Elvis.
Com visual impecável e tecnicamente soberbo, Blade Runner 2049 foi um sucesso de crítica, mas um fracasso de público, como foi o original do qual deriva, o que é uma pena porque honra o legado do filme de Ridley Scott e dá uma dimensão maior do futuro sombrio que espera a humanidade. O longa escorrega em coisas que seriam fáceis de serem resolvidas numa pós produção ou com um cuidado melhor com o seu roteiro, que por consequência acaba minando o trabalho de alguns atores. Em se tratando do primeiro problema, talvez vinte ou trinta minutos a menos não comprometessem o resultado final - há momentos que poderiam ser subtraídos na sala de edição sem prejuízo ao produto final e que ferem principalmente o segundo ato (sequências envolvendo Joi parecem durar mais do que deviam, por exemplo, e não fazem a trama andar). A duração do filme e a edição um tanto arrastada com certeza foram fatores que comprometeram a bilheteria, já que o público de hoje, dessa geração do videoclipe, não está acostumado com um filme de ritmo tão melancólico quanto esse.
O segundo problema da produção, é um tanto mais grave e mais complexo. Quase todo o elenco está bem e homogêneo, com Ryan Gosling adiante fazendo cara de idiota em uma primeira parte, para depois começar a expressar seu sofrimento, confusão, resignação, fúria e dor à medida que a trama se desenrola. Mas reparem que o trabalho de Ryan só consegue despertar empatia quando surge em cena Ana de Armas como Joi. A parte mais irregular do elenco talvez seja Jared Leto, que se esforça, mas parece o mais deslocado e fora do tom. Seu personagem é um tanto clichê, querendo produzir milhões de replicantes tal qual um vilão de desenho animado com o seu plano de dominação mundial (e sim, Leto é um ator capaz, mas de novo o roteiro não ajuda). Robin Wright é excelente e uma atriz subestimada, prejudicada pelo roteiro que a impede de ir além.
É graças ao roteiro que Blade Runner 2049 também tem seus momentos piegas, como sequências dentro do encontro entre K e Deckard, diálogos psicóticos de Wallace ao ver sua cria nascer que tentam pessimamente fazer uma conexão com o personagem Roy do original; e a forma como o filme basicamente entrega o ouro antes do tempo, principalmente para quem conhece o de 1982 - não é preciso ser nenhum gênio para antecipar a solução de muitas questões. Se as coisas lá no filme antigo operavam em subtexto, com interpretações e dilemas mais profundos em apenas uma linha de diálogo, aqui é preciso relevar coisas como uma conversa sobre ter uma alma entre K e sua chefe que não soa constrangedora ou cafona porque os atores não permitem. A personagem Joi termina de maneira ridiculamente abrupta - justo ela, que tanto apareceu. O ápice de Blade Runner 2049 falta alguma coisa - o clímax é ruim e está milhares de anos luz de distância do original - e há personagens interessantes que entram, como a líder de uma revolução replicante, com muito a dizer mas pouco a fazer ao ser atropelada mais uma vez por ele, o roteiro. Mackenzie Davis zanza pra lá e pra cá e está lá para preencher vaga e o indicado ao Oscar Barkhad Abdi some tão de repente quanto aparece.
É um alento, porém, saber que tudo o que fez de Blade Runner original um clássico está lá, todos os elementos, para o bem ou para o mal, e tranquiliza saber que o diretor Dennis Villeneuve honra o legado do original dando continuidade a trama, sem ignorá-la, sem ambicionar ser melhor ou maior e ao mesmo tempo sem permanecer o tempo todo na sombra do clássico de Ridley Scott. Dennis é merecedor de elogios por assumir uma responsabilidade gigante, por ter coragem de dar continuidade a trama depois de tanto tempo e por conseguir fazer com que o filme suba o nível quando se distancia do original e caminha com suas próprias pernas. Se o diretor não cria A CENA nem enche o filme de simbologias como Scott fez, ele dá ao espectador motivos para voltar a trama quando o filme acabar. O resultado não poderia ser outro: uma continuação mais do que digna, acima da média, que sem dúvidas merece ser vista.
Cotação: 4/5